segunda-feira, outubro 29, 2007

O meu amor não cabe num poema


"O meu amor não cabe num poema ― há coisas assim,

que não se rendem à geometria deste mundo;

são como corpos desencontrados da sua arquitectura

os quartos que os gestos não preenchem.
O meu amor é maior que as palavras;

e daí inútil a agitação dos dedos na intimidade do texto ―a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías

nem a candura a mão que protege a chama que estremece.
O meu amor não se deixa dizer ― é um formigueiro

que acode aos lábios com a urgência de um beijo

ou a matéria efervescente os segredos;

a combustão laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios

de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.
O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras

com a nudez do teu nome ― é um fantasma que estrebucha

no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.Um verso que o vestisse definharia sob a roupa

como o esqueleto de uma palavra morta. nenhum poema

podia ser o chão a sua casa."


Maria do Rosário Pedreira

deve chamar-se tristeza....


Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa
Saudade que não deseja.
Sim, tristeza - mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a Ter.
Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
De entre as mãos ricas de pó.
Fernando Pessoa

"Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento
Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel. base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Columbina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham que o sonho comanda a vida. Que sempre que o homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mão de uma criança. "
António Gedeão